Há uma epidemia de violência contra a mulher – e aí?

Ou será que a violência apenas começou a ser noticiada?

Nas manifestações que envolvem todo o país, é lamentável a quantidade de cartazes machistas que pipocam pela internet e pelas ruas. Criaram até um tumblr pra eles.

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Machismo não é coisa só de homem, como se vê.

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É chocante ver tantos cartazes errados nas manifestações que nós entendemos como “corretas”, ou pelo menos com reivindicações interessantes?

É. Mas eles estão nas ruas sem vergonha nenhuma exatamente porque essas pessoas que os empunham não enxergam que estão erradas. Que não acham que existe nada errado em objetificar uma mulher, em diminuí-la, em considerá-la incapaz para certas coisas, em tratá-la como propriedade de alguém (ou de algo, como esse Estatuto do Nasciturno, que transforma o útero da mulher em um local praticamente público, uma propriedade do Estado sujeito a investigação como uma cena de crime. Nem vou falar nisso, fica pra outro dia, pra outras pessoas).

Se a violência acontece todos os dias, por que ela não haveria de acontecer também nas manifestações?

Este vídeo é de um comediante de stand-up britânico, mas as risadas (eu espero) são todas de nervoso.

A mensagem é clara: os homens são a maior ameaça às mulheres.

Este belo e terrível infográfico da OMS (em inglês) resume as pesquisas que a organização fez em diversos países. Além disso, uma pesquisa recente revela dados de homicídio doméstico que apontam para a seguinte conclusão: a violência contra a mulher é uma epidemia.

Quem é mulher sabe:

– Não pode andar em qualquer rua

– Não pode usar qualquer roupa

– Não pode falar o que quiser

– Não pode olhar nos olhos de todo mundo

– Não pode ser simpática com qualquer um

– Não pode se manifestar, não pode ocupar a rua pelos seus direitos, não pode discutir com policiais, não pode. Não pode. Não. Pode.

Por que a gente aceita essas regras? Por medo. Medo de ser mal interpretada, medo de “provocar”, medo de encontrar alguém mal intencionado na esquina seguinte, medo.

E o medo é real: uma em cada três mulheres de 15 a 49 anos sofrerá, em algum momento da vida, violência física ou sexual cometida por um parceiro íntimo. Estes dados são MUNDIAIS, não estou falando de algum povoado remoto nos rincões esquecidos da África.

E estamos falando apenas de PARCEIROS, a estatística nem inclui os caras aleatórios que andam pelas ruas procurando menininhas para estuprar.

Ou que te veem passar pela rua e se sentem no direito de dizer “ssssss ê gostosa”.

Por que sim, cantada na rua é violência sim.

Não estou falando de uma situação em um bar, de paquera, em que várias pessoas (de todos os gêneros) tentam conhecer outras e, eventualmente, trepar. Estou falando das cantadas que acontecem em situações completamente assépticas, das cantadas que te fazem ter medo de sair de casa, de passar por algumas ruas, de situações que

Imagine (quem é mulher não precisa imaginar, apenas relembre) a seguinte situação:

Você saiu de casa e no caminho do ponto de ônibus passou por um ponto de taxi, vários homens parados ali conversando. Você passa, eles te chamam, sussurram alguma cantada ou apenas uma onomatopeia, você finge que não ouviu e continua andando.

Quantos de nós nos sentimos à vontade com isso? Quantos de nós voltaríamos a passar pelo mesmo ponto de taxi sem respirar fundo e se preparar para o que virá? E ainda vêm me dizer que não é uma violência?

Quando eu estava viajando vivi diversas situações de violência por eu ser mulher. 

Algumas comuns às situações pelas quais passamos no Brasil, como cantadas na rua. Essas eu nem ligava, já acostumada a lidar com elas.

Mas vale listar alguns exemplos bizarros:

Em muitos lugares na Índia os homens (principalmente os mais velhos) não falavam comigo. Quando eu fazia uma pergunta, eles respondiam para o Fernando, meu amigo que era meu “marido” durante a viagem pelo país.

Quando os homens falavam comigo, muitas vezes eles queriam me passar uma cantada, tocar em mim (lá homens não podem tocar nas mulheres e vice-versa), tirar uma foto comigo, me perguntar o tamanho do meu sutiã. Sim, um cara em Nova Delhi me perguntou o tamanho do meu sutiã. Esse tipo de assédio faz com que eu me tornasse uma mulher muito mais antipática, porque afinal dar bom dia, sorrir ou agradecer um serviço prestado significavam um convite sexual. Poucos (e honrosos) casos foram exceção na Índia.

Outra situação chata: ter que fingir ter um marido, afinal mulher não viaja sozinha, mulher não sai de casa sozinha, mulher precisa de um homem – ou ela é puta. Também tive que fingir ter marido na Jordânia, para tentar me livrar de alguns caras insistentes que queriam transar comigo.

Também na Jordânia um segurança de um hotel em Petra (um hotel grande, de uma rede internacional cara) estava puxando uma conversa amena sobre viagem, o que achei das ruínas, etc, até que ele perguntou “Já esteve com um árabe? Eu sou bom, tenho 26 centímetros”. Claro que a conversa acabou ali.

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“Lívia, que roupa coberta é essa em pleno calor do deserto?” – Dica: não é pra me proteger do sol.

Na Turquia a cantada era mais como no Brasil. Uns psius quando passava na rua, um vendedor atrevido dizendo que eu podia levar a fantasia de odalisca de graça se vestisse ela e dançasse pra ele primeiro.

Na Tailândia, Laos e Camboja, surpreendentemente, não sofri NENHUMA violência por ser mulher. A explicação que eu ouvi é que os homens acham as mulheres do ocidente grandes demais (claro, em comparação com as miudinhas tailandesas…) e por isso nos deixam em paz. As mulheres lá sofrem abusos, sim e, é claro, são muito reprimidas. Mas as estrangeiras passam por esses países ilesas. No Laos, por exemplo, todas as mulheres que estão fora de casa à noite são prostitutas. Todas. Garçonetes de bares inclusive. Mulheres que não são dessa vida não podem sair de casa depois do por do sol. Dados de uma pesquisadora sobre violência sexual que conheci em um hostel em Savannakhet, uma cidade de médio porte no Laos.

Porém faço uma ressalva de que na Birmânia não são tantas rosas assim. Um menino de 16 anos em um templo em Bagan me perguntou se eu queria transar com ele em um dos templos abandonados. E um outro que devia ter uns 19 anos, que estava sentado ao meu lado em um ônibus noturno, ficou roçando sua mão na minha perna até que eu desse um tapa na mão dele e colocasse meu saco de dormir entre nós. E eu dormi depois disso? Não, né. Ainda bem que os ônibus ficam com as tvs ligadas no karaokê birmanês a noite toda.

Na Tunísia, quase nenhum problema. Minhas amigas que me hospedaram são de uma família liberal e a gente até saía de shortinho pra rua (ainda bem, que calorrrrr). Mas quando fui às termas de Korbous, um lugar de turismo praticamente exclusivo de tunisianos, rolou um receio. Nadar ou não nadar de biquini? Havia apenas homens na água. E umas poucas mulheres cobertas sentadas nas pedras. Nos decidimos por ir de biquini, Maha (minha amiga tunisiana) e eu. Foi tudo bem, mas um cara ficava falando coisas obcenas à distância para nós enquanto nadávamos. E depois que nos trocamos, ele ainda se sentiu no direito de ir falar com a gente, que a gente era linda, sei lá, ele falou em árabe. Aí mandei ele tomar no cu, mostrei o gesto universal do dedo do meio, e ele ficou puto e saiu xingando a gente de prostituta. Af. Por pouco a Tunísia se safa deste post.

Na Europa, como é de se esperar, o assédio foi bem mais leve. As mulheres são mais livres para andar de short e até (que liberdade!!) fazer topless na praia para se bronzear sem marquinhas – sem ohs e ahs envolvidos.

Mas o documentário “Femme de la Rue”, de Sofie Peeters, mostra que nem Bruxelas está livre do assédio

Se nem uma capital europeia onde as mulheres vão nadar nos lagos fazendo nudismo está livre do machismo, você realmente achava que as manifestações aqui no Brasil estariam livres dele?

ACORDA: a gente vive em um mundo de homens, para homens, coordenados por homens (mesmo que presididos por uma mulher).

Meu apelo é o seguinte: não se deixe intimidar.

A gente pode protestar sim. Por qualquer causa que quiser.

A rua é nossa sim. Para ocupar, para passear, para usar.

Nós podemos viajar, sim, para qualquer lugar que quisermos (inclusive, se você pensa em viajar para o Irã, aproveita que nós brasileiros temos visto on arrival).

Nós podemos tudo. Tudo o que quisermos. Ocupar o cargo que quisermos. Não aceite homem (ou mulher) te dizendo que este ou aquele lugar não é para você. Decida você mesma onde, como e com quem quer ir para onde for que seja.

Está insegura? Você tem razão, nosso medo é real. Mas não se deixe intimidar. Vá. Vá com mais mulheres. Vá com mais amigas.

Ocupem todos os espaços. Sejam felizes, sejam livres, sejam vocês mesmas.

Quanto mais mulheres exercendo seus direitos, mais mulheres irão fazer o mesmo.

Eu faço a minha parte, e você?

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Mais sobre feminismo neste post de 2011.

Comments
7 Responses to “Há uma epidemia de violência contra a mulher – e aí?”
  1. Fabiane Zambon disse:

    Num dos momentos mais tristes que passei, de machismo (praticado por mulheres!) – e isso não tem a ver com classe social ou grau de instrução, nem religiosidade- tive a sorte de você e outros raros amigos por perto. Eu percebi que antes, me aprisionava nesse grupo de hipocrisia, tentava me encaixar. E finalmente, senti que dentre tantas verdades que se diz por ai, é com pessoas como você, que sou livre para ser eu mesma. Sua inteligência, generosidade e espírito livre me ensinam muito. Você já superou muitos medos que eu engatinho parar enfrentar. Do mais: nem machismo, nem feminismo. É de respeito que se trata aqui. 😉

    • Liv disse:

      ❤ querida Fabi! Fico feliz que tenha gostado do texto 🙂

      Só tenho que dizer que esse é um texto bem feminista, na verdade. "Feminismo é um movimento social, filosófico e político que tem como meta direitos equânimes (iguais) e uma vivência humana liberta de padrões opressores baseados em normas de gênero. Envolve diversos movimentos, teorias e filosofias advogando pela igualdade para homens e mulheres e a campanha pelos direitos das mulheres e seus interesses." https://pt.wikipedia.org/wiki/Feminismo

  2. Marina Maciel disse:

    Oi, Lívia! Obrigada por compartilhar suas experiências nesse post – e como você se livrou dos problemas também. Ainda não sei ao certo como reagir nessas situações. Na hora, o sangue ferve e não faço nada do que planejei com calma antes – pena que nunca dá para prever o que tipo de violência vai ser, infelizmente. Vou experimentar dar um tapa na mão de alguém da próxima vez… Abraços!

  3. Rodolfo Aguiar disse:

    Eh Vivi

    um problema srio. Desde tempos imemorveis era assim. A Bblia (antigo e novo testamento) so cheios de relatos inimaginveis no ocidente de hoje, se fossemos transportar os acontecimentos.

    Como em todas as reas da humanidade, isto tem diminudo ao longo dos sculos. Em grande parte graas luta de mulheres como voc.

    Beijos

    papai

  4. Lucila disse:

    Oi, Livia
    Adorei seu texto e as suas histórias. Eu tmb penso muito nessa violência que sofremos quase que diariamente qdo. andamos pela rua, pegamos um metrô, subimos num ônibus, etc. É incrível como os homens se acham no direito de dizer o que querem a hora que querem, sem pensar em como nós mulheres nos sentimos. Ano passado estive na África e as primeiras perguntas que me faziam (nessa ordem) eram: vc é casada, né? Tem filhos? Viajando sozinha, como assim? E o resto do diálogo vc já imagina como era. Mas acredito que aos poucos podemos fazer com que essa mentalidade machista e arcaica mude…vagarosamente, eu sei. Pelo menos a gente já está fazendo a nossa parte!
    Abraços e ótimas viagens pra vc!!

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